Tu podias ser eu, se fosse rapaz e tivesse nascido há vinte anos. E eu também podia ser tu, porque amo e sofro da mesma forma, porque tenho os olhos quase da mesma cor e corpo quase com o mesmo peso e um coração igual, tirado a fotocópia, com aurículas e ventrículos como todos os outros, mas um bocadinho maior do que é habitual. Isto sou eu a imaginar, porque nunca vi não há radiografas ao coração e se houver, tenho medo de as ver, pode ser que o médico nos diga – a ti ou a mim, tanto faz – que temos um coração tão grande que um dia pode rebentar no peito e não dava jeito nenhum, pois não?
Os amigos não se fazem, reconhecem-se, disse o poeta que escreveu e de repente, não mais que de repente... de repente, tudo pode acontecer, basta um instante, as pessoas cruzam-se por acaso para nunca mais se separarem, e é então que percebemos que nada é por acaso, que afinal estar naquele sítio àquela hora era apenas a forma de nos aproximarmos e ficarmos mais ricos, mais cheios, melhores.
Tu já sabias que ia ser assim, tens o olhar dos adivinhos e a intuição dos grande sábios, mas eu não fazia ideia nenhuma e por isso vou saboreando o presente como este presente que a vida me deu, a tua amizade, o teu tempo, a tua atenção, a tua discrição, a tua lealdade, a tua estima e preocupação, o teu bem querer, o teu conforto, pensando que a vida é grata e atenta e nos vai dando o que precisamos, basta estar atento aos sinais e saber segui-los com cuidado e humildade, aceitando os desvios e enfrentando os inevitáveis precipícios, descansando sempre que é preciso, sem nunca parar, sem nunca desistir, sem entregar as armas nem o coração.
Daqui a dez ou vinte ou trinta anos, terás perdido o cheiro a leite da pele, eu terei rugas e uma cabeça coroada de cabelos brancos, mas quero que saibas que, quando não tiveres força para estar com mais ninguém, podes sempre vir ter comigo e descansar nas minhas histórias que te fazem rir e me fazem pensar que ainda tenho alguma graça, mesmo que o tempo me esbata os sonhos e me roube os ideais. E quero que venhas sempre com esse olhar de gato e esse andar de menino, ensinar-me coisas novas e descobrir comigo livros, discos, filmes e frases e viagens ao sul, saboreando o presente que a vida nos deu um ao outro quando nos cruzámos e decidimos que seria bom morar no coração um do outro. "
Margarida Rebelo Pinto
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